segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

‘O PODER REVELA MUITO MAIS DO QUE CRIA OU DEFORMA’

No Estadão

FHC recebeu a coluna, na tarde de quarta-feira, para falar sobre poder na condição de ex-presidente e sociólogo.
O poder corrompe ou revela o caráter de uma pessoa?
Para o intelectual, ele “mais revela” do que transforma.
Ou seja, para FHC, a ocasião NÃO faz o ladrão.
Aqui vão os principais trechos da conversa.

Para se ter poder é necessário, de fato, aparentar poder?

Em geral, sim, mas não necessariamente.
Você às vezes tem que disfarçar o poder para exercê-lo.
A tradição brasileira é muito mais de disfarçar do que de aparentar.
As famosas coisas que Getúlio fazia, por exemplo: fingia que ia fazer algo e ia para um outro lado.
Acho que, em geral, quem tem consciência do poder não vai exibi-lo.
Ao exibir, abre o jogo e cria o contra corpo.


Lula exerceu o poder por meio da popularidade?

Ele parecia gostar da exterioridade do poder muito mais do que da eficácia de uma decisão.
Gostava do aplauso.
É uma forma de exercer o poder.
Mas nunca vi no Lula um homem de Estado, um poder no sentido mais forte, daquele que tem visão, sabe que tem que alcançar seus objetivos e constrói o caminho.
Ele construiu o poder para si mesmo.


O senhor acha que ele não tinha um projeto para o Brasil?

O que tinha, esqueceu no caminho.
Adotou o que existia, não o que ele havia proposto.
Até me pareceu interessante o Lula no Fórum Social no Senegal, que é o fórum contra a globalização.
Ora, o Lula foi o presidente que mais ajudou o Brasil a se globalizar.
Aderiu inteiramente.
Eu não estou criticando por ele ter feito a adesão.
Estou criticando a mudança, essa inconsistência.
Ele não tinha um propósito.
Este já havia sido dado pela sociedade.
Ele assumiu aquilo e como que surfou na direção que a sociedade estava apontando.
Não contrariou para mostrar que tinha um objetivo e a força de mudar algo em curso para chegar ao seu objetivo.


No mundo, as pessoas hoje pensam mais no poder do que em um projeto de Nação?

Vamos pegar o que aconteceu nos Estados Unidos no século 18.
Bem ou mal, aqueles líderes definiram um caminho, criaram a declaração universal da democracia, a Constituição americana, adotaram as concepções de Montesquieu e por aí foram.
Tinham uma visão de futuro e aquilo marcou tudo.
Mesmo um tipo como Napoleão, que é o oposto da coisa americana.
Aqui, José Bonifácio tinha essa percepção e sabia o que queria.
D. Pedro II, se não tinha uma visão, alguma ideia ele tinha de que tinha que civilizar isso aqui.
Eu acho que alguns presidentes brasileiros tiveram, como o Getúlio: você pode não concordar com a visão dele, mas ele tinha noção de Estado herdada dos positivistas, autoritária e tal.
Alguns tiveram uma certa noção, desenharam o que era possível para o País, mesmo que não tivessem uma coisa tão fundamental como os grandes pensadores americanos.


Obama tinha um projeto quando se elegeu?

Não. O Obama tinha um discurso: “Sim, nós podemos”.
Podemos o quê?
Nesse aspecto, ele tem uma certa semelhança com o Lula, porque os dois simbolizavam alguma coisa.
Não é que tivessem que ter uma proposta.
Eles próprios já simbolizavam mais democratização: venho de baixo e chego lá, sou negro e chego lá.
Aquele discurso admirável do Obama sobre racismo é uma coisa grandiosa.
Mas não é um projeto de Nação.
Ele também chegou lá e fez uma tentativa de melhorar o bem-estar da população com seu projeto de saúde.
Conseguiu mais ou menos, não tudo que queria.
E ficou perdido por isso, passou a ter que resolver os problemas deixados por outros.
Ou seja, como enfrentar a crise do capitalismo com os instrumentos disponíveis?
Daí por diante, inundou o mundo de dólares, salvou os bancos.
Não creio que fosse projeto dele.
Foi engolfado pela situação.


O senhor acha que Dilma assumiu o poder com um projeto?

Acho que não.
Ela nunca falou à Nação sobre isso.
Vai tocando no dia a dia.
Qual é o projeto?
O que está bem, que continue.
Acabar com a pobreza, todos nós dissemos isso e todos nós fizemos um pouco nessa direção.
Não só eu, antes de mim também o Itamar, o Sarney, os militares.
Isso não é um projeto de Nação: é uma necessidade.
Não podemos ter um País com esse grau de pobreza.
Nesse momento em que ninguém pode mais ter um projeto desligado do mundo, visto que o grande problema hoje é ligado à globalização, não dá para você ter um caminho que não incida e sofra as consequências do mundo.
Temos que discutir estratégias.


Existe uma versão “criminalizadora” da política e do poder, sugerindo que pessoas boas entram na política e aí se tornam más e corruptas.
Poder corrompe ou revela o caráter?


Mais revela.
É claro que o poder absoluto dá mais chances aos mais fracos de ficarem maus.
Veja, vamos falar português claro: uma pessoa que tem posição de mando (não precisa ser presidente) tem enormes possibilidades de enriquecer.
Ele tem informações e pode usá-las.
O que freia isso, o que inibe?
É você mesmo.
Quando você não o faz, é você mesmo que deixa de fazê-lo.
Não é que o poder está impedindo.
Então, acho que poder revela muito mais do que cria ou deforma.
É claro que a permanência no poder deforma, porque essas chances vão se repetindo, repetindo… e aí chega um momento em que o risco de você incorrer em erro é maior.


Quem o conhece, diz que o senhor era uma pessoa antes de assumir o poder, a mesma pessoa durante e a mesma quando saiu.
Mas dentro do senhor, o que mudou no exercício do poder?


Dentro muda.
Você vê que as coisas são muito mais difíceis do que você pensava.
Você vê que a ambição humana é muito maior do que imagina.
Pessoas que são próximas, e você nunca vislumbrou a possibilidade de elas terem uma ambição desproporcional, pedem a você o que não devem pedir.
O poder dá uma percepção talvez mais realista do ser humano.


Como isso mudou o senhor como pessoa?

Talvez endureça um pouco, porque você desconfia, a pessoa vai te procurar e você pensa: “O que será que ela quer?”.
Em vez de partir do princípio de que não quer nada que seja negativo.
Começa a ficar com um pé atrás, fica esperto, astuto para o mal que possa vir.
Mal no sentido do inapropriado.
A Ruth pesou muito também no meu estilo, porque era muito direta, muito simples, sempre teve horror de ostentação de poder e dessas coisas.
Minha família não ficou deslumbrada.
Até hoje, quem são os meus amigos mais próximos?
São os da universidade, que eu já tinha antes.
Com quem eu convivo?
Com as pessoas que sempre convivi.
É claro que acrescentei, mas nunca mudei de grupo, de camada, de círculo.


Como é o poder para o senhor hoje em dia?

Hoje não tenho poder nenhum.
Posso ter é influência, que é uma outra coisa.
É a capacidade de a partir do que você fala e faz, influenciar o comportamento de terceiros.
Poder é quando você pode obrigar, eu decreto tal coisa e passa a valer.
Você tem a capacidade de coagir o outro, pela lei no caso da democracia, mas mesmo a lei está baseada na força, tem autoridade.


O poder leva ao autoengano?
Por exemplo, muita gente critica que o senhor deveria ter feito muito mais marketing dos coisas que conseguiu fazer durante seu governo, em lugar de esperar que a história lhe fizesse justiça.


É possível que o poder iluda.
No caso do marketing, eu mesmo tinha muita resistência.
Por outro lado, naquela época isso não seria tolerável, as finanças não eram tão favoráveis assim.
A Bolsa Escola, por exemplo, foi a origem de todas as bolsas.
Distribuímos 5 milhões de bolsas e eu não usei isso como se fosse dádiva.


O senhor achava que haveria um reconhecimento natural ao seu governo?

Eu não estava nem pensando nisso.
Tinha uma dúvida profunda: não sei se estou constituindo um começo ou um interregno.
Eu dizia isso: essas coisas que nós estamos fazendo, eu não sei se é o começo de uma mudança ou se é um momento que depois vai regredir.
Vendo hoje, algumas coisas foram um começo, a estabilidade foi uma delas, assim como a área social.
Outras foram um interregno, como a concepção de secularizar mais a política e não ficar nessa coisa patrimonialista.


Mas e o marketing?

Nunca tive a preocupação de fazer propaganda em termos pessoais, realmente não pensei.
Alguém me perguntou como vou ser visto daqui a 100 anos.
Será que eu serei visto?
E se eu for bem-visto, estarei morto.
De que adianta? (risos)
E tem o seguinte: a História modifica o julgamento.
Dependendo de cada momento da História, você é bom ou é mau, isso vai variando.
Se você fez alguma coisa que mereça ser vista por ela, ótimo.
Mas isso não quer dizer que sua posição está assegurada, porque alguns vão dizer que foi bom e outros que foi mau.
Depois muda a geração, o que era bom virou mau, o que era mau virou bom.
Isso é muito comum, não só no poder.
Eu estava lendo hoje numa revista: “Baudelaire não conheceu a glória quando vivo”.
Pode ser.
Mas de que adianta conhecer a glória morto?

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