sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O RÉU AUSENTE

Demétrio Magnoli

A tese da quadrilha, emanada da acusação e adotada pelo relator, ministro Joaquim Barbosa, orienta a maioria dos juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do caso do mensalão. Metodologicamente, ela se manifesta no ordenamento das deliberações, que agrupa os réus segundo a lógica operacional seguida pela quadrilha. Substantivamente, transparece no conteúdo dos votos dos ministros, que estabelecem relações funcionais entre réus situados em posições distintas no esquema de divisão do trabalho da quadrilha.

As exceções evidentes circunscrevem-se ao revisor, Ricardo Lewandowski, e a José Antônio Dias Toffoli, um ex-advogado do PT que, à época, negou a existência do mensalão, mas agora não se declarou impedido de participar do julgamento. O primeiro condenou os operadores financeiros, mas indicou uma inabalável disposição de absolver todo o núcleo político do sistema criminoso. O segundo é um homem com uma missão.

O relatório de "contraponto" do revisor, uma cachoeira interminável de palavras, consagrou-se precisamente à tentativa de implodir a tese principal da acusação. Sem a quadrilha a narrativa dos eventos criminosos perderia seus nexos de sentido. Como consequência, voluntariamente, a mais alta Corte vendaria seus próprios olhos, tornando-se refém das provas materiais flagrantes. Juízes desmoralizados proclamariam o império da desigualdade perante a lei, condenando figuras secundárias cujas mãos ainda estão sujas de graxa para absolverem, um a um, os pensadores políticos que coordenavam a orgia de desvio de recursos públicos.

Esse caminho, o sendero de Lewandowski, felizmente não prosperou. Há um julgamento em curso, não uma farsa.
(...)

O enigma é, porém, ainda mais complexo. Como registrou o advogado de defesa do ex-deputado Roberto Jefferson, há um réu ausente, que atende pelo nome de Lula da Silva.

Toda a trama dos crimes, tal como narrada pela acusação, flui na direção de um comando central. Dirceu, prova o procurador-geral, detinha autoridade política sobre os operadores cruciais do mensalão. Mas acima de Dirceu, no governo e no PT, encontrava-se Lula, "um sujeito safo" que "sempre se mostrou muito mais um chefe de governo do que chefe de Estado", nas palavras do mesmo Marco Aurélio. A peça acusatória, todavia, não menciona Lula, o beneficiário maior da teia de crimes que alimentavam um sistema de poder. A omissão abala sua estrutura lógica.

"Você acha que um sujeito safo como Lula não sabia?", perguntou Marco Aurélio, retoricamente, ao jornalista que o entrevistava.

Ninguém acha - e existem diversos depoimentos que indicam a ciência plena do então presidente sobre o essencial da trama. O mesmo tipo de prova indireta, não documental, utilizada na incriminação de Dirceu poderia - e, logicamente, deveria - ter sido apresentada para pôr Lula no banco dos réus. Mas o procurador-geral escolheu traçar um círculo de ferro em torno de um homem que, coberto de motivos para isso, se acredita inimputável. A opção da acusação, derivada de uma perversa razão política, assombrará o País por longo tempo.

Íntegra  AQUI.

* SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP.

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